RMP – Nº 181 | Edição Papel

Resumos

O caso Encrochat à luz do Direito da União

Ana Wallis de Carvalho
Juíza Desembargadora
Perita Nacional destacada no Eurojust

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) analisou a legalidade da obtenção e utilização de provas provenientes da interceção de comunicações encriptadas através do provedor de serviços «EncroChat». No âmbito de um inquérito conduzido pelas autoridades francesas, com autorização judicial, foi instalado um software troiano nos servidores da «EncroChat», permitindo a interceção de dados de comunicações protegidas. Estas informações foram posteriormente partilhadas com autoridades de outros Estados-Membros (EM), através da execução de pedidos de cooperação judiciária. O acórdão abordou questões relacionadas com a admissibilidade da prova, a competên- cia das autoridades de emissão de decisões europeias de investigação (DEI), a proporcionalidade das medidas de interceção de telecomunicações, a prote- ção dos direitos fundamentais dos arguidos e concluiu que a utilização destas provas é admissível desde que respeite os requisitos do processo penal do Estado de emissão e que seja garantido um processo equitativo. Determinou, contudo, que as provas obtidas em violação do direito da União devem ser excluídas, caso comprometam a defesa do arguido ou influenciem decisiva- mente o julgamento. Esta decisão tem implicações significativas para a coo- peração judiciária no seio da União Europeia, evidenciando a necessidade de um equilíbrio entre a eficácia da investigação criminal e a proteção dos direitos fundamentais.

O dissecar da interação entre processos tributários e penais tributários: pressupostos e conseqências Os artigos 47.o, 48.o e 21.o, n.o 4 do Regime Geral das Infrações Tributárias

Catarina Valente
Procuradora da República

No âmago deste texto, pretende-se identificar e analisar os vários elementos que compõem o complexo normativo cuja aplicação é espoletada pelo cru- zamento de dois processos judiciais em curso (o tributário e o penal tribu- tário), dividindo-os previamente em pressupostos e consequências. Abordando a concretização da interação pela via processual, que decorre dos artigos 47.o e 48.o do RGIT, constatámos a exigência inicial da prejudiciali- dade da questão do processo tributário relativamente à que é objeto do pro- cesso penal tributário, que vai determinar, quanto a este processo, a respetiva suspensão até ao trânsito em julgado das sentenças na impugnação e na opo- sição fiscal, passando estas a ser ações prioritárias e vindo as sentenças nelas proferidas a constituir caso julgado para aquele processo crime. E ainda a ocorrência da suspensão da prescrição do procedimento criminal nos termos do artigo 21.o, n.o 4 do RGIT.

A Autora preconiza que, conquanto a não consagração legal de caso jul- gado, na situação inversa àquela que alude o artigo 48.o do RGIT, a sentença do processo crime deverá ser considerada para o desfecho do processo tribu- tário, mais expressivamente quando tiver sido condenatória e menos quando for absolutória, atendendo à maior exigência probatória em processo penal.

Alegação da prova da intenção de burlar

Alberto Augusto Vicente Ruço
Juiz Desembargador

Como a intenção é um facto mental e, por isso, não é testemunhável, a res- petiva prova torna-se problemática. Porém, se nos dermos conta da natureza do facto «intenção» e da estrutura em que ele surge e atua, é mais fácil fazer a respetiva prova e contribuir, assim, para a formação positiva da convicção do juiz. Provamos a intenção de burlar, um dos componentes da ação, mostrado que a ação, onde a intenção se insere, existiu e existiu porque existiram pre- viamente certos interesses, desejos, necessidade, no caso, obter um enrique- cimento ilegítimo, os quais provocaram no agente a decisão de os satisfazer, agindo através de certos meios considerados adequados, segundo as crenças e conhecimentos do agente, no caso, agindo de modo a gerar na mente do outro um erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, para alcançar a finalidade almejada, ou seja, obter o enriquecimento à custa do outro. Por outras palavras, provamos a intenção mostrando que todos os atos externos da ação, os executivos, se encontram unificados pela dimensão interna da ação, isto é, pela mesma intenção/finalidade, formando a parte interna e a externa da ação um todo, pelo que provada a finalidade que unifica todos os atos externos da ação fica demostrada a intenção.

Famílias em mudança: O estudo de caso das famílias não íntimas ou desprovidas de uma componente sexual

Nausica Palazzo
Professora Auxiliar, NOVA School of Law

Filipe Gama
Investigador Independente

Este artigo analisa as mudanças que o conceito de família sofreu nas socieda- des ocidentais contemporâneas, centrando-se nas uniões familiares sem uma componente sexual. A crescente diversidade de configurações familiares tem motivado debates jurídicos e sociais, nomeadamente no contexto da evolução dos direitos da família e da inclusão de novas formas de coabitação. A investi- gação oferece uma análise comparativa de alguns sistemas jurídicos que opta- ram pelo reconhecimento legal de tais uniões, incluindo a Bélgica, os Países Baixos, os Estados Unidos e o Canadá, destacando diferentes mecanismos de proteção jurídica, desde os contratos de coabitação ao reconhecimento legal das uniões de facto. O estudo investiga ainda as motivações sociais e políticas que impulsionam a aceitação legal destas uniões, destacando a importância da prestação de cuidados e do apoio mútuo, bem como o seu contributo para a estabilidade económica e a inclusão social, reduzindo a dependência da assistência estatal.

Nótula sobre o artigo 877o do Código Civil (proibição da venda a filhos ou a netos)

Nuno Filipe Coelho
Juiz de Direito

A proibição de realização de vendas a filhos ou a netos (artigo 877.o do Código Civil) é uma originalidade do direito nacional que suscita variadís- simas questões quanto à sua razão de ser, quanto ao seu alcance (mormente, por via da interpretação extensiva da norma proibitiva), quanto ao modo como deve ser prestado o consentimento e quanto ao exercício, em juízo, do decorrente direito de anulação pelos interessados que não consentiram na alienação. Neste texto, abordam-se, numa perspectiva prática e teórica, as questões relacionadas com aquela proibição que mais assiduamente têm surgido na jurisprudência dos tribunais superiores.

Democracia desafiada: ativismo judicial, centralidade do Direito e sociedade hiperjurisdicionalizada

João Gaspar Rodrigues
Promotor de Justiça

A problemática abordada no estudo é o ativismo judicial, um fenômeno de crescente influência nas democracias modernas, que envolve o papel dos tribunais na política e o risco de desequilíbrio entre os poderes. O termo e a prática, inseridos num contexto de centralidade do Direito e de uma sociedade hiperjurisdicionalizada, são amplamente debatidos, a partir das ambiguidades conceituais que dificultam sua compreensão clara e objetiva. A metodologia utilizada neste ensaio consiste em uma análise avaliativa sis- temática para esclarecer o significado do ativismo judicial em diferentes con- textos, buscando eliminar a confusão conceitual. O objetivo é promover um debate equilibrado e esclarecedor sobre o papel dos tribunais e os limites do ativismo judicial na democracia brasileira.

Crimes de dano contra a natureza: indemnização por dano coletivo

Cláudia Freitas
Procuradora da República

O Ministério Público tem competências importantes na área do meio ambiente e da preservação da biodiversidade animal. Essas competências incluem, quer a promoção da proteção do ambiente e da biodiversidade, intervindo para evitar ou remediar situações que representem riscos ou danos irreversíveis no meio ambiente, quer na fiscalização do cumprimento das leis ambientais, quer intervindo judicialmente, ora promovendo ações cíveis de indemnização e reparação, visando restaurar os ecossistemas afe- tados, como as populações de espécies animais em perigo de extinção, ora exercendo a ação penal em casos de crimes ambientais, como a caça ilegal, a destruição de habitats naturais ou a poluição.

A atuação do Ministério Público é, pois, fundamental para garantir que as gerações futuras possam usufruir de um ambiente saudável e de uma fauna rica e diversificada.

A acusação publicada é um dos exemplos da intervenção do Ministério Público nessa defesa.

Dos discutíveis efeitos de uma declaração de ilicitude do despedimento: comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-01-2025

João Leal Amado
Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

O autor efectua uma análise crítica ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-01-2025, no que diz respeito aos efeitos da declaração judicial de ilicitude do despedimento de um trabalhador. A nossa lei associa a tal declaração um conjunto de efeitos, nos artigos 389.o a 391.o do CT, tais como o direito do trabalhador despedido a ser reintegrado na empresa ou a rece- ber a indemnização substitutiva dessa reintegração, o dever de o empregador indemnizar o trabalhador por todos os danos causados pelo despedimento ilícito, patrimoniais e não patrimoniais, bem como o dever de o empregador pagaraotrabalhadoroschamados“saláriosintercalares”,istoé,asretribuições correspondentes ao período que medeia entre o despedimento e o trânsito em julgado da decisão judicial que declare a respetiva ilicitude. É justamente neste ponto, no respeitante ao cálculo dos “salários intercalares”, que o Autor discorda das conclusões vertidas no Acórdão do Supremo Tribunal de Jus- tiça supra mencionado.