Resumos
Justiça Social, Cidadania e Cultura – Três Pilares do Estado Constitucional
Paulo Ferreira da Cunha
Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça
Longe de ser uma ociosa questão filosófica ou uma mera polémica ideológica, a justiça social é uma interpelação ao Direito, desde logo pela meta de uma “sociedade mais justa, mais livre e mais fraterna” do Preâmbulo da Constituição, que deve ser levada a sério. De modo idêntico, está historicamente provado que há uma recíproca causação entre a Cultura e a Cidadania, florescendo uma com a outra e perecendo uma com a decadência da outra. Em tempos de crise pandémica, com a proliferação de vírus naturais e sociais (ou mentais), a actualidade destes três pilares ou muralhas do Estado Constitucional afigura-se uma urgência.
A crise sanitária e os problemas da excepcionalidade normativa: reflexões juspublicísticas
Ana Raquel Gonçalves Moniz
Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Universidade de Coimbra, Instituto Jurídico
O artigo pretende apreciar algumas das questões suscitadas, no sistema jurídico português, pela crise sanitária provocada pela pandemia da COVID-19, sob a óptica do Direito Constitucional e do Direito Administrativo. Considerando a inexistência anterior de diplomas específicos que permitissem debelar estas crises, o ordenamento reagiu através dos instrumentos de excepcionalidade (constitucional e administrativa) pré-existentes, visando conciliar a promoção e, sobretudo, a protecção da saúde pública com a tutela dos restantes direitos fundamentais. Partindo do pressuposto do papel relevante desempenhado pela Administração Pública (e, muito especialmente, do Governo) na concretização dos bens e valores constitucionais (tal como pressupõe a teorização do «constitucionalismo administrativo»), analisa-se sucessivamente o impacto da pandemia na criação e concretização do direito da excepcionalidade, bem como no controlo judicial dirigido à tutela dos direitos fundamentais comprimidos. Conclui-se, por fim, que a excepcionalidade das circunstâncias volta a exigir reflexões que tocam o âmago do próprio Estado de direito e, com toda a probabilidade, determinará a elaboração de diplomas especificamente destinados à prevenção e combate de crises sanitárias, similares aos já existentes em ordens jurídicas próximas da nossa.
Diz-me quem te representa, dir-te-ei quem és: o Ministério Público como representante do Estado nas acções administrativas
José Manuel Ribeiro de Almeida
Procurador da República
O artigo versa sobre questões de constitucionalidade concitadas pelas alterações estabelecidas pela Lei n.º 118/2019, de 17 de Setembro, aos artigos 11.º, n.º 1, e 25.º, n.º 4, do Código do Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais, do ponto de vista do artigo 219.º, n.ºs 1, 2 e 4, da Constituição, e ainda dos artigos 112.º, n.º 5, 165.º, n.º 1, alínea p), todos da lei fundamental. No culminar da análise de constitucionalidade empreendida, conclui o Autor que o novo regime legal incorre em violação do “núcleo significativo” da reserva constitucional ou da garantia institucional da representação do Estado pelo Ministério Público, bem como da reserva de lei, com as inerentes proibições de deslegalização e de discricionariedade, e, finalmente, da garantia de defesa do Estado.
A privacidade digital posta à prova no processo penal
Paulo de Sousa Mendes
Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
O artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos trata do respeito pela privacidade. O Quarto Aditamento à Constituição dos EUA trata igualmente do respeito pela privacidade. O processo penal deve assegurar a proteção da privacidade, na medida do possível, e o direito em acção deve respeitar os limites da cópia de dados electrónicos e as restrições impostas à análise externa do acervo recolhido. Entre os aspectos críticos da análise externa de dados electrónicos, avulta a questão do procedimento a adoptar pelo investigador criminal diante dos conhecimentos fortuitos, uma questão que é analisada detalhadamente neste artigo. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos caracteriza-se por alguma ineficácia na criação de remédios para a violação da privacidade no processo penal, designadamente no tocante à cópia de dados electrónicos e à análise externa do acervo recolhido, desde logo porque não comina a exclusão das evidências produzidas por computador que tenham sido obtidas ilicitamente, o que deveria ser o caso, à luz do princípio do processo equitativo. O conhecimento das directrizes e do direito jurisprudencial norte-americano representa um contributo valioso para o aprofundamento da jurisprudência de Estrasburgo, na sua dupla função decisória e nomofilácica, assim como para o aperfeiçoamento dos ordenamentos jurídicos nacionais europeus ao nível legislativo e ao nível da prática decisória e jurisprudencial.
Crime de adesão a organização terrorista internacional religiosa de matriz jihadista
Cláudia Oliveira Porto
Procuradora da República no DCIAP
Arménio Pontes
Inspector-Chefe na Unidade Nacional Contra-Terrorismo da Polícia Judiciária
A investigação e julgamento dos crimes de terrorismo internacional religioso de matriz jihadista exigem uma resposta eficaz do ordenamento jurídico português.
Ao analisar o elemento objectivo do tipo “a eles aderir”, no crime de adesão a organização terrorista internacional religiosa de matriz jihadista, o aplicador da lei poderá ser tentado a equipará-lo ao elemento objectivo “quem fizer parte” do crime de associação criminosa, e fazer depender essa adesão à verificação dos requisitos para a prática de um crime de associação criminosa.
No entanto, as categorias concebidas e construídas para as associações criminosas comuns são totalmente dissonantes do modus operandi, organização e funcionamento de organizações terroristas como o Estado Islâmico, que integra micro-células e lobos solitários.
Ignorar as características especiais das organizações terroristas internacionais religiosas de matriz jihadista, exigindo que, para adesão às mesmas, se verifiquem os requisitos das associações criminosas comuns, constitui um erro de direito. Impõe-se, por isso, uma interpretação actualista do crime de organizações terroristas.
Por amor… Da relação entre o ciúme e o homicídio
Rute Cardoso Almeida
Magistrada do Ministério Público
A reflexão pretende explorar a possível integração do ciúme nos conceitos de motivo torpe ou fútil, e, nessa sequência, analisar o enquadramento dos crimes de homicídio cometidos com tal motivação no crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2, alínea e), do Código Penal. Com efeito, várias têm sido as decisões dos nossos tribunais que propugnam entendimento oposto, sendo o objectivo presente perscrutar os argumentos aí utilizados e respectiva análise face ao ordenamento jurídico português.
Reflecte a Autora igualmente sobre o discurso judiciário na matéria, uma vez que a linguagem e discurso permitem, paralelamente (por vezes, de forma contraditória), reflectir os valores sociais num determinado momento histórico, ou conformar os mesmos de acordo com a sua interpretação de tais valores.
Inquietações em torno do crime de aliciamento de menores para fins sexuais (artigo 176.º-A do Código Penal)
José Menezes Sanhudo e Rebeca Martins Campanário
Mestres em Ciências Jurídico-Criminais
(Faculdade de Direito da Universidade do Porto) Advogados
Os autores analisam criticamente o crime de «aliciamento de menores para fins sexuais», previsto no artigo 176.º-A do Código Penal, focando-se, nomeadamente, nos aspectos essenciais respeitantes aos seus tipos objectivo e subjectivo, nas questões relacionadas com a tentativa e o momento da consumação do delito e, sobretudo, nas relações de concurso aparente existentes entre o delito de aliciamento e outros delitos sexuais contra menores. A final, os autores apresentam uma proposta de alteração legislativa.
Consequências sucessórias para o condenado por crime de violência doméstica ou de maus tratos perpetrada na pessoa do autor da sucessão: é tempo de estender ao Direito Civil os efeitos repressivos do ilícito penal em toda a sua amplitude?
André Teixeira dos Santos
Juiz de Direito
Mestre em Direito
Estudo que aborda de forma crítica o actual regime de indignidade sucessória e respectivo cotejo com a condenação, transitada em julgado, de sucessível pela prática de crime de violência doméstica ou de maus tratos na pessoa do autor da sucessão.
O escândalo e o processo do Crédito Predial (1910-1911): revisitar o passado do BES
Luís Eloy Azevedo
Magistrado do Ministério Público
Investigador do IHC-FCSH-UNL
Universidade Católica Portuguesa Centro de Estudos e Investigação em Direito
Neste artigo, procura o Autor descrever e contextualizar o caso do Crédito Predial (1910-1911), um escândalo financeiro e criminal de grandes proporções que muito contribuiu para a queda da monarquia. Traça sucintamente o quadro da emergência do sistema bancário em Portugal e retrata o envolvimento político que a sua gestão assumia.
Descreve, também, o percurso penal deste acontecimento, um case study histórico-jurídico de primeira importância no nosso século XX, cujo contorno legal é em grande parte desprezado pela historiografia que se contenta com a transmissão genérica do seu resultado e pelo mundo da justiça que praticamente desconhece a sua existência.